Quais usos dados a agua devem ser garantidos por que

1A Declaração Universal dos Direitos da Água1, redigida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1992, preconiza que o futuro da humanidade depende da preservação da natureza e dos recursos naturais, sendo a água um dos elementos primordiais e indispensáveis à manutenção e sobrevivência da vida na Terra, seja animal, vegetal ou humana. É um patrimônio natural disponível no ambiente, que exerce influência na atmosfera, no clima, na vegetação, na cultura e na agricultura.

2Em função da crescente demanda global por recursos hídricos para atender às necessidades básicas, práticas agrícolas e comerciais, a Organização das Nações Unidas desde a década de 1970 vem se preocupando em discutir o tema em âmbito internacional. Em 1977, a Conferência das Nações Unidas realizada em Mar del Plata2, Argentina, teve como tema central a água; a década seguinte foi escolhida com a Década Internacional de Abastecimento de Água Potável e Saneamento (1981-1990); em 1992, em Dublin, na Irlanda, foi realizada a Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente3; também em 1992, foi realizada no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Eco-92 ou Cúpula da Terra, que debateu as questões relacionadas a esse recurso natural vital.

3Observa-se nesses exemplos a preocupação da Organização das Nações Unidas em relação à proteção e ao uso da água, sobretudo porque sua falta ou escassez colocará em risco todo o ecossistema e, consequentemente, a vida humana.

4Neste sentido, Borghetti et al. (2004), mencionam que o abastecimento de água potável está entre os principais indicadores de qualidade de vida em um país, uma vez que inúmeras doenças se originam com a ingestão de água contaminada. Quase 80% das doenças, em países chamados em desenvolvimento, estão associados com água, causando cerca de três milhões de mortes precoces4.

5Por outro lado, os recursos de transformação da água comum em água potável, ainda são lentos, frágeis e limitados, tanto no Brasil, quanto no mundo e devem ser gerenciados com racionalidade e precaução para que esse patrimônio natural seja disponibilizado à posteridade, em quantidade suficiente e necessária.

6Para que esse recurso natural não se esgote e para que não haja danos a qualidade das reservas mundiais atualmente disponíveis, é imprescindível que a água não seja desperdiçada, poluída ou envenenada e sua utilização deve ser realizada de forma consciente.

7Os dados sobre o consumo da água são fornecidos pela Organização das Nações Unidas: em todo o mundo, a agricultura é responsável por 70% de todo o consumo de água, em comparação com 20% para a indústria e 10% para uso doméstico. Nos países industrializados, no entanto, as indústrias consomem mais de metade da água disponível para uso humano.

8Borghetti et al. (2004) afirmam que o consumo global da água dobra a cada vinte anos, duas vezes mais, comparado a taxa da população mundial. Em 2004, o Brasil encontrava-se em 14º lugar no consumo da água no mundo, com 59,2 quilômetros cúbicos ao ano, um equivalente a 1,6% do total da água no mundo, sendo que 62% destina-se à agricultura.

9A demanda crescente também está associada a mudanças no modo de vida e hábitos dos alimentares. A produção de biocombustíveis, por exemplo, fez aumentar a demanda por água, estima-se que são necessários cerca de 11.000 litros de água para produzir um único litro de biodiesel. (Crise da Água, 2016).

10De acordo com Vieira e Barreto (2006), em termos hídricos, o Brasil é um país rico, o que permite larga disponibilidade dos recursos hídricos5, contando com 13,7% de toda água doce disponível no planeta, abriga enorme biodiversidade hídrica na região do Pantanal, considerada a maior área úmida continental no mundo e a Várzea Amazônica, a mais extensa floresta alagada da Terra. No entanto, embora privilegiado quanto à quantidade e qualidade de água, estes recursos têm sido usados de maneira irresponsável. A super exploração, despreocupação com os mananciais hídricos, má distribuição, poluição, desmatamento e desperdício demonstram a falta de cuidado com esse valioso bem. O mau uso põe em risco a vida de todos os seres vivos.

11O adequado uso da água implica no respeito à Legislação pertinente, e sua proteção constitui uma obrigação jurídica que não deve ser ignorada pelo Estado, por seus gestores públicos e pelos gestores privados. Ante sua importância exige-se o correto manuseio e controle, visando a manutenção e sobrevivência dos organismos vivos.

12Neste sentido, o presente estudo tem como objetivo estudar a água, sob a ótica jurídica, econômica e social, com ênfase às nascentes e à poluição hídrica.

1. A água como bem jurídico, econômico e social

13A água é um bem de uso comum do povo, essencial para a existência dos seres vivos, sendo, portanto, necessário sua proteção jurídica.

14No Brasil, desde a Constituição Imperial de 1824, havia uma preocupação com as águas, que afirmava que os rios pertenciam à coroa. O Código Penal de 1890 ocupava-se com a proteção das águas, cujo artigo 162 previa: “Corromper ou conspurcar a água potável de uso comum ou particular, tornando-a impossível de beber ou nociva à saúde. Pena: prisão celular de 1 (um) a 3 (três) anos”.

15A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 18916 indicou as competências legislativas federais e estaduais sobre as águas. O Código Civil de 1916, continha um capítulo com sete artigos, do 563 ao 568, que tratava das águas. Mas, não regulamentava o domínio das águas, apenas o direito de vizinhança e a utilização da água como um bem essencialmente privado e de valor econômico limitado. Assim, ao proprietário assegurava-se o uso da água como desejasse, limitando apenas a respeitar os direitos de vizinhança. (Araújo, Barbosa, 2008).

16A primeira legislação a tratar especificamente das águas, foi o Decreto Federal nº. 24.643, sancionado em 10 de julho de 1934, que instituiu o Código das Águas, que passou a cuidar de forma mais significativa a questão da água7, inclusive classificando-as8.

17A partir do Código das Águas, entra em vigor o Decreto nº. 13, de 15 de janeiro de 1935, que organizou os registros de aproveitamento de energia hidráulica. Em 1939, através do Decreto-Lei nº. 1.699, foi criado o Conselho Nacional de Águas, cujas competências se restringiam à energia elétrica. (ABAS, 2016). Observa-se que as águas começam a ser percebidas como elemento básico do desenvolvimento econômico, vista como matéria-prima de geração de energia elétrica, fundamental para a industrialização.

18Outra legislação importante foi o Código Penal de 19409 ─ Decreto-lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 ─ que previa a responsabilidade penal pela poluição das águas.

19A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 foi considerada a “mais moderna e liberal Constituição que o país jamais teve”, trazendo mudanças importantes sobre o domínio das águas. (Granziera, 2001: 88)

20Tal Constituição exclui os Municípios do domínio sobre as águas, sendo que o artigo 35 dispõe que “Incluem-se entre os bens do Estado os lagos e rios do seu domínio e os que têm nascente e foz no território estadual”. No que se refere aos bens da União, manteve o domínio de lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio ou que banhassem mais de um Estado, ou servissem de limite com países ou se estendessem a território estrangeiro, assim como as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países. (Araújo, Barbosa, 2008).

21Em 1960, uma medida relevante foi a criação do Ministério das Minas e Energia, que assumiu as ações até então atribuídas ao Ministério da Agricultura (Lei nº 3.782 de 22/07/1960); no país iniciava-se o desenvolvimento industrial e a consequente urbanização, exigindo maior consumo de água e energia. (ABAS, 2016).

22Já a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, foi um marco na proteção ambiental, preceituando o direito de todos a um ambiente ecologicamente equilibrado, assim como o dever da coletividade e do Poder Público de defendê-lo e preservá-lo para às presentes e futuras gerações. A água como componente do ambiente passa a ser considerada um direito humano fundamental: todos têm direito ao acesso à água em quantidade suficiente e qualidade adequada.

23No que se refere às competências legislativas, o artigo 22 da Constituição Federal de 1988, delegou à União a competência para legislar sobre águas e energia.

24Embora, o Código das Águas ─ ainda em vigor ─ seja considerado uma legislação exemplar do direito brasileiro, não dispõe sobre alguns assuntos de extrema importância, como por exemplo: a poluição das águas, as formas de uso, a gestão descentralizada e participativa.

25Desta forma, ao sediar a Eco-92, o Brasil assumiu internacionalmente10 o compromisso de ampliar a proteção das águas, o que deu origem a Lei n.º 9.43311, de 08 de janeiro de 1997, mais conhecida como Lei das Águas, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) e regulamentou o inciso XIX do artigo 21 da Constituição Federal. Essa legislação complementou o Código das Águas e trouxe uma série de inovações à gestão dos recursos hídricos no Brasil.

26Posteriormente, em 17 de julho de 2000, através da Lei nº. 9.984, foi criada a Agência Nacional de Águas (ANA), um órgão da União, responsável por implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos e por coordenar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. A Agência busca articular o planejamento nacional, regional, estadual e dos setores usuários criados pelas entidades que integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos.

27Destaca-se que a Lei nº 9.433/97, acima citada, em seu artigo 1º, inciso II, dispõe que “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”.

28Como visto, a natureza econômica da água tem sido percebida desde o início do século ─ por exemplo, o Código Civil de 1916.

29Contudo, a partir da década de 70, a água potável passa a sofrer a adoção de três princípios: mercantilização, privatização e oligopolização mundial. Gradativamente surge o engarrafamento d’água e a elaboração de bebidas gaseificadas. O Estado tenta hegemonizar o mercado e reduzir os conflitos em torno da exploração e domínio dos mananciais superficiais e subterrâneos d’água potável, intervindo nas relações entre a sociedade civil. (PETRELLA, 2000).

30O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, desde o início da década de 90, por força da pressão exercida pelas corporações multinacionais, passam a fazer exigências aos países ditos de 3º mundo, para que adotem critérios para mercantilizar e privatizar a água.

31De acordo com Borghetti et al. (2004), o interesse internacional pela disputa do domínio das reservas hídricas, especialmente as brasileiras, se transformou em risco e desrespeito à soberania nacional frente aos indícios de que os países desenvolvidos tem a intenção de gerenciar mundialmente os recursos hídricos, utilizando a aprovação de projetos e leis reducionistas e economicistas, ancoradas em acordos de cooperação e apoiados por organismos que liberam recursos para pesquisa, em troca de informações estratégicas ao monopólio do sistema de exploração e gestão da água, com destaque ao Aquífero Guarani, uma das maiores reservas hídricas do mundo.

32Analisa Petrella (2000, p. 2) que “Para o estado-maior mundial da água é necessário que seja tratada como um bem econômico, sob o pretexto de que seja a única maneira de combater eficazmente a escassez e o aumento rápido do seu preço. A água tornou-se cara e mais se tornará no futuro, o que fará dela o "ouro azul" do século XXI. Segundo o projeto de declaração ministerial, somente a fixação de um preço de mercado aferindo o custo total dos serviços fornecidos (pretenso justo preço) poderá assegurar o equilíbrio entre oferta e procura em acentuado crescimento, bem como limitar os conflitos entre os habitantes do campo e da cidade; entre agricultores e industriais (...) ecologistas e consumidores responsáveis (...); entres regiões ricas e pobres; entre Estados participantes das mesmas bacias hidrográficas. A partir dessas premissas, exportar e comercializar a água, mesmo a longa distância, segundo as regras do livre comércio e no contexto da livre concorrência, permitiria não somente realizar vultosos lucros, mas também eliminar os conflitos.”

33É fundamental, portanto, mapear as reservas hidrológicas naturais que existem no mundo; porém, quando fomentado por grupos de interesse macula um patrimônio da humanidade (a água), uma vez que as informações geradas poderão alimentar os bancos de dados de grupos com interesses escusos e que possivelmente venham a adquirir propriedades em terras próximas às fontes de água pura, denominado “ouro azul”, com a intenção de que no futuro detenham o monopólio (Borghetti et al., 2004).

34O Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2016 alerta que “A redução da disponibilidade de água irá intensificar ainda mais a disputa pela água por seus usuários, incluindo a agricultura, a manutenção de ecossistemas, assentamentos humanos, a indústria e a produção de energia. Isso afetará os recursos hídricos regionais, a segurança energética e alimentar, e potencialmente a segurança geopolítica, provocando migrações em várias escalas. Os potenciais impactos nas atividades econômicas e no mercado de trabalho são reais e possivelmente graves. Muitos países em desenvolvimento estão localizados em pontos críticos de tensões relacionadas à água, particularmente na África, na Ásia, na América Latina e no Oriente Médio.” (ONU, 2016).

35Os países com escassez de água convivem-se com domínio, exploração, abastecimento, comercialização e uso incoerente da água. Dessa forma, diante da redução crescente do abastecimento de água doce, da poluição de nascentes, da exploração insensata, é necessário tratar da gestão dos mananciais de superfícies e subterrâneos, com a articulação entre Poder Público e entes privados, analisando a questão da privatização quanto ao domínio e exploração, a fim de que haja o correto gerenciamento para proteção das reservas de água do planeta.

36A água é uma herança natural, doada gratuitamente pela natureza ao ser humano, que lhe atribuiu valor econômico. Entende-se que é necessário a intervenção do Estado no seu domínio, exploração, comercialização e uso. A água é um bem necessário, cuja proteção e preservação são vitais. No entanto, poderá tornar-se escassa, especialmente se houver gestão adequada.

37Por outro lado, a Lei n.º 9.433/97, acima citada, em seu artigo 1º, inciso I, dispõe que “a água é um bem de domínio público”. Ou seja, a água não é uma propriedade privada, “mas sim um bem ambiental difuso, bem jurídico indisponível e fundamental de uso comum do povo, nem de domínio público nem suscetível de qualquer tipo de apropriação privada.” (Caubet, 2004, p. 143).

38Algumas organizações não-governamentais (ONGs) mobilizam-se em diversos lugares do mundo para discutir acerca desse tema; a água é um bem comum da humanidade, insubstituível e essencial a todo tipo de vida que existe sobre a Terra.

39Contudo, o grande problema é que durante milênios considerou-se a água como um recurso infinito; entretanto, seu uso inadequado água, sua demanda crescente, o decréscimo de sua disponibilidade, as mudanças climáticas, o desmatamento, etc. têm sido a preocupação de muitos cientistas e autoridades no planeta.

40O II Fórum Mundial pela Água, realizado em Haia, na Holanda, em 2000, de iniciativa do Conselho Mundial da Água, decidiu que a disponibilidade da água vai além de simples necessidade do ser humano e da sociedade. É um direito natural instituído, devendo a humanidade ter acesso garantido e facilitado. (Petrella, 2000).

“Hoje [2012], 1,6 bilhão de pessoas vivem em região com escassez absoluta de água. Até 2025, dois terços da população mundial pode ser afetada pelas condições críticas da água. (...) Desastres relacionados com água contabilizam 90% dos riscos naturais e sua frequência e intensidade estão gradualmente crescendo. Em 28 de Julho de 2010, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas reconheceu explicitamente o direito humano a água e saneamento; e que água potável e saneamento são essenciais para a realização de todos os direitos humanos.” (RIO+20, 2012).

41Lamentavelmente, a garantia do acesso à água para todos ainda é restrita e representa um desafio mundial, em razão da exploração dos recursos naturais de forma desordenada e, consequentemente, das mudanças climáticas.

2. A importância da água

42Sabe-se que a Terra é azul, esta cor reflete, sem dúvida alguma, as grandes massas de água que constituem a hidrosfera do planeta. Todavia, é importante considerar que somente 2,6% são de água doce; 98,7% desse total não estão disponíveis para o consumo humano, seja porque estão congelados – formando as calotas polares a norte e a sul (76,4%), seja porque integram os aquíferos (22,8%). Apenas uma fração ínfima, aproximadamente 0,5% dos 2,6% do total das águas doces, encontra-se prontamente acessível como água superficial, formando áreas alagadas, rios, lagos e represas (Bicudo, Tundisi, 2010).

43Os maiores aquíferos12 de todo o planeta estão localizados em subsolo do continente sul-americano: o Aquífero Alter do Chão, considerado o maior aquífero em volume de água (86 mil quilômetros cúbicos de água doce), está localizada sob os estados do Amazonas, Pará e Amapá (Naime, 2015) e o Aquífero Guarani, maior do mundo, com relação a sua extensão territorial13, localizado sob o Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, com 2/3 de sua área total distribuída entre os Estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. (Ribeiro, 2008).

44A rede hidrográfica brasileira, a mais extensa no mundo, mede 55.457 quilômetros quadrados de rios, equivalente a 1,66% do total da superfície da Terra. (Borghetti et al., 2004).

45O Brasil tem, portanto, o maior quinhão mundial de água potável, mas esse patrimônio natural traz grande responsabilidade em gerir e distribuir.

46“O Brasil é um país privilegiado com relação aos seus recursos naturais e, entre estes, os recursos hídricos superficiais e subterrâneos” (Tundisi, 2010, p.09); contudo, com aproximadamente 12% das reservas de água doce de todo o planeta, 80% concentra-se na Bacia Amazônica, onde vive apenas 7% da população, sobrando 20% para serem distribuídos desigualmente pelo resto do País. (Daher, 2003).

47Nessa perspectiva, levando-se em conta o aumento das demandas pela água e da sua possível escassez, as nascentes são fontes estratégicas como abastecimento às futuras gerações. Sendo que “[...] a extração desordenada desse recurso, portanto, poderá afetar entre outros processos, o escoamento básico dos rios, a descarga das fontes ou nascentes, os níveis de açudes, lagoas e pantanais.” (Pereira, 2012).

48Verifica-se que, segundo dados do IBGE (2000), cerca de 60% do abastecimento de água se dá por meio de poços (públicos ou particulares) ou de nascentes.

2.1. A proteção das nascentes

49A Resolução n.º 303/02 do CONAMA define nascente como sendo o local onde a água aflora naturalmente do solo, mesmo que de forma intermitente. Segundo Calheiros et al. (2004, p. 13), nascente é o “(...) o afloramento do lençol freático, que vai dar origem a uma fonte de água de acúmulo (represa), ou cursos d’água (regatos, ribeirões e rios). Em virtude de seu valor inestimável dentro de uma propriedade agrícola, deve ser tratada com cuidado todo especial.”

50A quantidade e a qualidade de água das nascentes de uma bacia hidrográfica podem ser alteradas significativamente pelas ações antrópicas, como o desmatamento, as queimadas, as atividades agrícolas e pecuárias, especialmente as áreas de pastagens no entorno de nascentes. (Pereira, 2012).

51Uma nascente ideal possui capacidade para fornecer água pura e com boa qualidade, de forma abundante e contínua, deve estar situada próxima ao local de uso e a um nível topograficamente mais elevado, permitindo ser distribuída pela gravidade, sem que haja gastos com energia. Além da quantidade da água produzida pela nascente, o ideal é que tenha boa distribuição no curso do tempo; a bacia não deve funcionar como um recipiente impermeável ou escoar em curto espaço de tempo toda a água recebida durante as chuvas, a bacia deve absorver boa parte da água através do solo, armazená-la em lençóis subterrâneos e cedê-la gradativamente aos cursos da água através de nascentes, mantendo a vazão mesmo em períodos de seca. A proteção da nascente é essencial para o uso econômico e social da água – bebedouros, irrigação e abastecimento público – assim como para a manutenção do regime hídrico do corpo da água principal, garantindo sua disponibilidade. (Calheiros et al., 2004).

52A conservação das nascentes está relacionada, principalmente, à sua tipologia, à legislação que rege sua proteção, ao papel das florestas na sua infiltração e a conservação da água subterrânea, além do reconhecimento dos principais usos da terra que, a curto e longo prazo, são causadores da sua degradação. (PINTO, 2003).

53Uma das principais ações para conservação das nascentes é a preservação de sua mata ciliar14, pois, de acordo com Lima (1986), a cobertura florestal interfere positivamente na hidrologia do solo, favorecendo os processos de infiltração, filtragem e armazenamento da água no lençol freático15, reduzindo o escoamento superficial e, consequentemente, os processos de erosão.

54Ressalta-se que as nascentes têm papel fundamental no atendimento às demandas de água das populações rurais: no abastecimento doméstico, no plantio de culturas diferenciadas, na produção de leite, etc.

2.2. Poluição e segurança hídrica

55No Brasil e em diversos países do mundo, os rios são as principais fontes de captação e abastecimento de água. Porém, os rios têm sido crescentemente degradados pela ação antrópica ao lançar os dejetos de efluentes domésticos, hospitalares e industriais de maneira indiscriminada, resultando na poluição hídrica. (Silva, Nascimento, 2015).

56Conforme Rahal (2015), o lançamento de dejetos altera as propriedades físico-químicas do ambiente aquático, cujo desencadeamento do processo denomina-se poluição. É necessário compreender de que forma a qualidade da água pode ser afetada pela ação humana irresponsável, seja doméstica, comercial, agrícola ou industrial, para demonstrar os impactos causados pelos poluentes a toda a sociedade. A qualidade da água interfere na qualidade de vida do ser humano, resultando em doenças ocasionadas pelo consumo e utilização de águas poluídas e falta de saneamento básico (urbano e rural), como esquistossomose e enfermidades ligadas à ingestão de água contaminada.

57A poluição da água repercute de maneira local, regional e/ou mundialmente, por isso foi amplamente discutida pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento ─ ECO-92, com o intuito de buscar o desenvolvimento sustentável e conhecer os meios de proteção ao ambiente aquático. O tema tem sido tratado em Relatórios do Programa das Nações Unidas Para o Meio Ambiente (PNUMA).

58O despejo de efluentes líquidos não tratados, originários de indústrias e esgotos sanitários, lançados em lagos, rios, córregos e no mar, são responsáveis pelo desequilíbrio do ecossistema aquático e de todo o ecossistema local (aquático e terrestre). Os despejos domésticos consomem grande parte de oxigênio para que ocorra o processo de decomposição, ocasionando mortalidade aumentada da população de peixes e alteração natural no funcionamento do sistema aquático. O fósforo e nitrogênio presente em dejetos, em alto nível resultam na proliferação de algas e no desequilíbrio do ecossistema. Os metais e agrotóxicos são poluentes químicos que provocam efeitos tóxicos nos animais e plantas aquáticas e o acúmulo em organismos vivos. (Rahal, 2015).

59Tanto a saúde pública como o ambiente tem sido objeto de estudo e desenvolvimento de projetos, políticas públicas e planos de gestão para prever e tratar doenças ocasionadas pela poluição das águas, uma vez que o problema tem ocasionado a morte de muitos animais e seres humanos. Silva e Nascimento (2015) afirmam que o problema se agrava com o crescimento desordenado e pela falta de infraestrutura em saneamento básico.

60Vieira e Barreto (2009) alertam que a degradação ambiental afeta a qualidade das águas e que quanto maior o volume da água poluída, mais difícil será tratá-la, o que pode propiciar o surgimento de novas doenças e o fortalecimento genético de doenças existentes. O combate à poluição hídrica16 pode ocorrer pela redução e eliminação de resíduos na fonte, que significa reduzir ou eliminar substâncias poluentes, os contaminantes, os efluentes domésticos, industriais e agrícolas. Porém, quando essas formas de combate não forem mais suficientes, é necessário buscar novos meios para tratar e melhorar a qualidade das águas, especialmente para a obtenção de água potável.

61O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010) projeta que mais de 71,8% dos municípios brasileiros ainda não dispõem de políticas de saneamento básico e cerca de 48,7% deles ainda não fiscalizam a qualidade da água ofertada à sua comunidade local. (Brasil, 2010).

62No Brasil, um total de 47% do ambiente urbano é abastecido exclusivamente com água de superfície, 39% com água subterrânea e 14% de ambas fontes. Deve-se quantificar a segurança hídrica para entender seu status atual, definir metas de melhorias, para focar a atenção dos gestores, stakeholders e tomadores de decisões, devendo avaliar o efeito das medidas adotadas para prever um aumento na segurança da conservação e disponibilidade dos mananciais de superfícies ou subterrâneas, determinando estratégias eficazes junto aos interessados na exploração e gestão da água no mundo. (Melo, 2015).

63Define-se a segurança hídrica como “(...) a capacidade da população de garantir o acesso sustentável à quantidade adequada e qualidade aceitável para os meios de subsistência, bem-estar humano e desenvolvimento sócio-econômico, para assegurar a proteção contra a poluição e os desastres relacionados com a água, e para a preservação dos ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política.” (Un-Water Analytical Brief apud Melo, 2015)

64Para atingir a segurança hídrica faz necessário adotar políticas e planos incorporados no pleno desenvolvimento nacional e internacional. Líderes mundiais e agências de financiamento devem crer que, em longo prazo, os investimentos em água poderão se transformar em oportunidades e em soluções aos desafios que se emergem no processo de abastecimento da água. (Un-Water Analytical Brief apud Melo, 2015).

65Deve-se realizar parcerias que promovam ações inovadoras, em todos os níveis da comunidade, nacional e globalmente, nas bacias hidrográficas. É fundamental que a água não seja percebida e tratada como "negócio", isso implica em mudar o modo de gerir os diversos setores de abastecimento da água e saneamento, seja nos campos da agricultura, energia, indústria e nas demandas humanas. É necessário balancear prioridades sociais, ambientais e econômicas, criar soluções e investimentos institucionais e infraestrutura, em pequena e grande escala, no armazenamento, transporte da água (transposições) e proteção dos recursos. (Melo, 2015).

66Faz-se, portanto, necessária a implementação de uma gestão compartilhada entre os Estados (nacional e internacional) e a população, a fim de promover o combate a poluição hídrica e garantir a segurança hídrica, ou seja, para que todos tenham acesso a água de qualidade.

3. Considerações finais

67Entende-se que a crise da água no século XXI é, além da escassez, a ausência/ineficiência de gerenciamento. Ao analisar a questão sob o prisma da qualidade, o temor com a escassez da água é relevante, pois é possível, dentro em breve, enfrentar-se uma grande crise de água. Haverá água, mas será difícil utilizá-la.

68A água, enquanto recurso natural, precisa ser usada de forma justa e coerente, para que se possa ter equilíbrio entre a disponibilidade desse recurso e a sua demanda, diminuindo com isso, os conflitos pelo seu uso.

69A água deve ser entendida como um bem jurídico, econômico e social, é um recurso natural limitado, de domínio público e dotado de valor econômico, que requer gestão adequada.

70Contudo, existe um desafio no que se refere a gestão das águas; os gestores, em especial, os gestores públicos precisam buscar soluções através de políticas públicas para superar os riscos de escassez e da devastação ambiental.

71A institucionalização dos processos de gestão de águas provoca discussões complexas na realidade do mundo atual, haja vista a existência de amplos interesses, inclusive internacionais, pelo direito ao uso da água.

72Desta forma, faz-se necessário que gestão da água seja desenvolvida a partir de uma visão integrada, buscando avaliar as soluções tecnológicas, econômicas e ecológicas, a fim de compatibilizar a utilização da água com suas respectivas demandas. Assim, além da atuação local e setorial, deve-se promover a integração das políticas públicas governamentais nacionais e internacionais, especialmente, no que se refere a exploração e domínio reservas hídricas; é necessário o estabelecimento de ações planejadas e executadas em conjunto.

73Nesse sentido, concluiu-se que é necessário um planejamento criterioso no manejo dos mananciais e a preservação hígida das nascentes, a fim de que a humanidade possa ter acesso e fazer uso de uma água pura, no presente e no futuro. Deve-se buscar a garantia de que as nascentes permaneçam límpidas, com o armazenamento de água de boa qualidade (potável), protegendo-as da poluição, a fim de que se alcance a segurança hídrica.